No cair da folha
As nuvens cheias de água provocavam dias de pálida e humedecida claridade. Novembro ia adiantado nos dias. As folhas das árvores, amarelecidas, iam caindo. Dobrava a finados. Morrera o Faustino. Deixava viúva e quatro crianças, ainda de colo a mais nova.
-- Com o cair da folha, é sempre esta desgraça! -– sentenciava Ti’Zé das Águias. -– Coitado do Faustino! Assim morre, pouco passando dos trinta!...
O silêncio pesava sobre as pessoas que esperavam o esquife. Todas pensavam, seguramente, o mesmo que Ti’Zé das Águias.-- E agora? Que vai ser da pobre e dos inocentes que vão ficar p’r’aí ao deus-dará? -- Tornou Ti’Zé, angustiado.
Jerónimo fechara a venda e chegava a tempo de ouvir esta interrogação.
--Ora, Ti’Zé! Agora, será como das mais das vezes… é sempre a mesma desgraça! Ai de quem morre! Quem cá fica, continuará aos trambolhões, que é a nossa sina!
Um ruído abafado de passos anunciava a chegada do funeral. Quatro homens, taciturnos, sustinham o esquife. Atrás, a viúva, as crianças e alguns vizinhos. Elas, de lenço preto; eles, de chapéu na mão. Haviam descido a chapada e chegado ao Largo. Numa agitação silenciosa, as pessoas que esperavam tomaram o seu lugar atrás das que chegavam e lá foram levar o Faustino à última morada. Toda a aldeia de Alambra estava de luto. À frente, seguia o padre, como que abrindo o caminho.
Ti’Zé das Águias seguia logo atrás da viúva e das crianças. Olhos no chão, vergava-lhe o corpo uma grande tristeza. Faustino, agora, ali, sem vida, era filho do Raimundo, o seu companheiro que se finara na Flandres às mãos dos boches. Raimundo mal conhecera o filho. Faustino não tinha memória do pai. Tinha apenas meses de vida quando Raimundo partira para sempre, para a guerra. Agora, partia Faustino para sempre, deixando, também ele, os filhos por criar. Num soluço, praguejou: Puta de vida esta!
No cemitério, a cerimónia foi rápida. O padre, finda a sua intervenção, acercou-se de Ti’Zé das Águias.
-- Então, Zé! Como vão as coisas no Monte? E o teu patrão? Há tempo que o não vejo!
-- Vai-se caminhando, senhor prior. O patrão lá anda nos médicos.
O padre era um homem mais velho que Ti’Zé das Águias. Falava baixinho, numa voz sem timbre e ciciada, denunciando a origem beirã.
Ti’Zé, fixando-o nos olhos, recriminou:
-- Senhor prior, tínhamos tanta esperança na salvação do Faustino! Eu sei que era a tísica, mas o senhor mesmo dizia para termos esperança em Deus, porque Deus o salvaria! E afinal…
O padre olhou-o com tristeza e murmurou:
-- Pois foi, Zé, Deus não quis…
Zé das Águias estremeceu.
-- Com’assim? Deus não quis? E fina-se tão cedo uma criatura? E deixando uma desgraçada carregada de filhos e de miséria?
-- A gente não sabe tudo, Zé! São os insondáveis desígnios de Deus… -- desabafou o padre.
Zé das Águias encarou-o, friamente:
-- Palavras bonitas sempre o senhor prior tem para dizer à gente, bonitas e que eu não alcanço; mas alcanço uma coisa: que morreu um homem na flor da vida e que fica viúva uma desgraçada rodeada de filhos sem pão nem razão!
José-Augusto de Carvalho
30 de Julho de 2010.
Viana*Évora*Portugal
um retrato bem marcado de um funeral nos idos de ir a pé, e da incapacidade em aceitar o que nos surge como injustiça pelas consequências de tantas mortes na flor da idade. De notar o diálogo com o padre por ser uma coisa tão da terra e das nossas gentes desassombradas.
ResponderEliminarBeijos desde aqui